Quem paga o flautista1? A influência dos líderes formadores de opinião.
Estou ficando cada vez mais preocupado com os efeitos dos líderes formadores de opinião (LFO) sobre a Ortodontia. Recentemente, duas publicações me chatearam e, simplesmente, não tive como não responder.
Já postei sobre os líderes formadores de opinião diversas vezes. Tais posts geraram um debate considerável. Também publiquei um post do Jason Cope, que explicou o seu papel como LFO de forma clara e transparente. Seu principal ponto foi que um LFO precisa declarar qualquer potencial conflito de interesses quando fala ou escreve sobre o produto.
Recentemente, a atividade dos LFOs tem ressurgido nas mídias sociais, resultando em afirmações sobre o efeito dos aparelhos que não são suportadas pelas pesquisas. Além disso, fiquei preocupado com dois “artigos de LFOs” publicados recentemente. Um deles foi um editorial no American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics (AJODO) e o outro foi uma discussão sobre os auto-ligáveis no Journal of Clinical Orthodontics (JCO).
Vamos começar com o editorial feito por Dave Paquette no AJODO.
In defense of corporate sponsorships and a plea for civility
David Paquette:
Am J Orthod Dentofacial Orthop 2018;154:459-60 https://doi.org/10.1016/j.ajodo.2018.07.007
O que ele disse?
Neste editorial, ele ressaltou que os fabricantes desenvolvem novos produtos para nos ajudar a fazer um tratamento melhor. Como parte deste processo, os LFOs nos informam sobre a experiência clínica deles ao utilizarem os novos produtos. Porém, existe uma presunção de que se um palestrante recebe pagamento de uma companhia, a opinião dele pode apresentar algum viés. Assim, existe um grande debate sobre o papel dos patrocínios corporativos e a influência dos LFOs. É importante ressaltar que alguns destes debates são indecorosos.
Então, ele afirma que os eventos corporativos, que promovem um produto ou companhia, são obrigados a ser parciais. Além disso, que vieses similares estão presentes na seleção de palestrantes no Congresso anual da Associação Americana de Ortodontia (AAO).
Ele também escreve que, na maior parte do tempo, a única evidência para dar suporte às novas tecnologias é por meio de relatos de casos. É importante ressaltar que ele afirma que não podemos colocar os novos desenvolvimentos em espera enquanto esperamos por resultados de um estudo clínico.
Finalmente, ele acha que todos que estão na “cena pública” deveriam divulgar suas associações e vieses. Fazendo isso, poderíamos dar suporte uns aos outros.
O que eu pensei?
Eu acho que a sua mensagem geral foi que quando um LFO promove um tratamento eles não deveriam sempre ser tratados com suspeita. Concordo, mas somente se eles declararem a sua associação. Nos Estados Unidos da América (EUA) os pagamentos para os LFOs são publicados. É só ir a este website e digitar o nome do LFO e você verá o quanto ele ganha de uma companhia (https://openpaymentsdata.cms.gov).
Infelizmente, foi uma pena que as associações do Dr. Paquette não foram declaradas no editorial. Na minha opinião, isto nega os seus argumentos.
Vamos para o JCO.
Todos sabemos que o JCO não é uma revista que publica pesquisa científica. Porém, ela é uma fonte muito útil de ótima informação clínica. Assim, ela influencia na prática clínica, o que traz ao seu editor e aos membros do conselho editorial uma responsabilidade com os nossos pacientes.
Portanto, fiquei surpreso ao me deparar com o editorial e com a “discussão aberta” sobre os bráquetes auto-ligados.
O editorial:
The pros and cons of self-ligation
R Keim
JCO August 2018
Em seu editorial o Dr. Keim afirma:
“A literatura sem viés válida sobre auto-ligáveis é indecisa”.
e
“A melhor forma do leitor mediano da JCO ter uma visão clara sobre os auto-ligáveis seria escutar ortodontistas de consultórios particulares”.
Para ser honesto, fiquei confuso com tais comentários. Na minha visão, baseado em vários estudos clínicos e revisões sistemáticas, está claro que não existem vantagens reais dos auto-ligáveis. Além disso, ele parece descordar desta ampla evidência.
Da mesma forma, fiquei preocupado quando ele escreveu:
“A contribuição atual do Dr. Graham é uma valiosa adição ao corpo da literatura clínica ortodôntica. Aprendi bastante com este artigo e acredito que você também vá. Ele certamente não vai agradar alguns tradicionalistas”.
Interpretei que aqueles que acreditam no tratamento baseado em evidência são os “tradicionalistas”.
A discussão aberta sobre os bráquetes auto-ligáveis:
The hot seat: Self-ligating brackets
JCO August 2018
Vamos para a discussão liderada pelo Dr. Graham. Aqui estão alguns dos pontos relevantes:
Ele perguntou à amostra de especialistas em consultórios particulares:
“A pesquisa baseada em evidência sobre os bráquetes auto-ligáveis não apoia nem fica contra. Por que?”
Derek Bock:“A maioria dos estudos possui vieses em seu desenho, não foram feitas as perguntas corretas”.
Tom Barron:“Descordo totalmente, existe evidência crescente oriunda de relato de casos e estudos in vitro”.
Bill Dischinger:“Existe alguma evidência na Ortodontia que seja baseada em evidência?”.
Stuart Frost:“Acredito que isso seja sobre viés em pesquisa e quem se beneficia dela”.
Tom Pitts:“Sou baseado em experiência”.
Outros comentários que apareceram sobre outras afirmações sobre os auto-ligáveis foram:
Luis Carriere:“Não tem dor”. “O tratamento é mais curto”.
Tom Barron:“Se eu tivesse que mudar para o sistema de bráquetes convencional, teria que planejar um percentual de casos com extrações, expansores palatais ou expansão rápida da maxila cirurgicamente assistida”
O que eu pensei?
Todos estes comentários e alguns outros foram opostos à evidência científica sobre os auto-ligáveis. Me pergunto por que esta abordagem estava sendo tomada. Fiquei preocupado de estarmos voltando aos dias nos quais as afirmações sobre os auto-ligáveis estavam fora de controle. Será que os especialistas dos consultórios particulares não leram ou, realmente, não entenderam a literatura? Então, dei uma olhada no website de pagamentos abertos…
Encontrei que em 2017, os Drs. Bock, Dischinger, Frost, Paschal, Barron e Reynolds receberam um pagamento total de US$1,065,000 (não distribuídos igualmente) de companhias que vendem bráquetes auto-ligáveis. É fácil para você dar uma olhada nos pagamentos individuais no Open Payments. Além disso, Luis Carriere é o maior LFO para a Henry Chein Orthodontics e tem um sistema de bráquetes auto-ligáveis com o seu nome.
Ironicamente, se as companhias tivessem gastado essa grande quantidade de dinheiro em estudos clínicos ao invés de gastar com os LFOs, teríamos conhecido a falta de evidência sobre os efeitos dos auto-ligáveis mais cedo do que soubemos.
Realmente, não tem mais nada a ser dito. Porém, estou certo que se o JCO tivesse declarado tais conflitos de interesse, o artigo seria interpretado de outra forma.
Resumo
Quando escrevi sobre os LFOs anteriormente, várias pessoas comentaram que eu não deveria me preocupar e que deveria parar de encarar isso como um problema. Estou preocupado, pois as pessoas levaram muitos anos tentando aumentar a base da evidência para os tratamentos ortodônticos. Na minha opinião, a última coisa que precisamos é de LFOs especialistas em Ortodontia levando mais desinformação sobre produtos, sem declarar o seu potencial conflito de interesses. Fico me perguntando se existe um perigo de nos tornarmos vendedores de qualquer técnica pela qual somos pagos para desenvolver e/ou promover. Essa não é forma como uma especialidade respeitada deveria se comportar.
1Originário do provérbio inglês “Who pays the piper, calls the tone” (Quem paga o flautista, escolhe a música” (N. do T.)
Traduzido por Klaus Barretto Lopes
Instrutor de Ortodontia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Emeritus Professor of Orthodontics, University of Manchester, UK.